Mais perto das estrelas

Mais perto das estrelas

Publicado a 2012-05-15

Estamos certos que já ouviram falar muitas vezes das “ilhas biogeográficas”. Este fenómeno resulta de um processo de isolamento dos indivíduos reprodutivamente compatíveis. Por razões, geralmente de índole ambiental, um conjunto de indivíduos de uma mesma espécie biológica acabam por ficar isolados e afastados dos seus congéneres, circunstância esta que lhes impossibilita de qualquer cruzamento de informação genética entre eles. O resultado deste fenómeno é que esses agrupamentos isolados de indivíduos começa a verificar-se um aumento progressivo de pais-parentes, com grau de parentesco cada vez mais próximo geneticamente. Afinal o intercâmbio de informação genética acaba por se limitar ao conjunto desses indivíduos e dos seus descendentes, tal como se estivessem a viver numa verdadeira ilha. Pode parecer absurdo e pouco compreensível, mas este fenómeno é o processo biológico mais habitual e frequente nos ecossistemas. Por quê?, pois provavelmente porque seja muito mais cómoda de garantir a descendência.

Para tentarmos compreender melhor tão complexo e ainda pouco estudado processo não temos que ir muito longe. O próprio ser humano utilizou este sistema para impor a sua espécie sobre a face da Terra. Num princípio, quando ainda a população humana era reduzida e a sua capacidade de expansão era muito limitada, as nossas populações ancestrais exploravam o cruzamento com outras pessoas da mesma tribo ou aldeia, quase sempre com algum grau de parentesco. O resultado foi o desejado, a descendência e a manutenção dessas populações. Foi assim como, pouco a pouco, o ser humano aumentou a sua presença e, deste modo, criou populações cada vez maiores. Com o passo dos séculos, esse efeito de ilha biogeográfica foi sendo cada vez menor e mais raro. De facto, hoje em dia resulta muito difícil encontrar descendentes de primos directos (ou de mães irmãs com filhos do mesmo pai, por exemplo), mas para garantir a sobrevivência da nossa espécie biológica foi necessário recorrer a esse mecanismo reprodutivo. Felizmente, ao longo dos últimos séculos os nossos antepassados já tiveram a oportunidade de afiançar relacionamentos entre pessoas de distintas populações, arrastando esse efeito ilha para um último plano (já muito castigado socialmente…).

Entre as plantas, curiosamente, esse fenómeno não resulta desprezável, antes ao contrário. Mas como é possível que tal processo possa ser útil para indivíduos que formam parte da base das cadeias tróficas dos ecossistemas? Pois precisamente por essa razão, pela enorme responsabilidade que possuem como pilares da cadeia trófica dos sistemas ecológicos. É uma necessidade garantir que o ecossistema vai ter substrato vegetal, pois caso contrário o ecossistema entraria numa quebra abrupta de funcionalidade e a própria vida no planeta ver-se-ia seriamente afectada. Por tal motivo os indivíduos chegam a potenciar mecanismos de isolamento reprodutivo, estimulando o cruzamento com congéneres próximos e acabando por se isolar reprodutivamente de outros da mesma espécie biológica mas mais istanciados. Neste universo de constantes contradições, a crueldade inerente à própria vida não permite esforços inócuos, embora um dos fundamentos da evolução seja a capacidade criativa que cada indivíduo possui e explora.

Agora é que podemos perguntar-nos a razão pela qual estamos aqui a falar dos esforços reprodutivos dos indivíduos e do efeito de ilha biogeográfica, quando na anterior nota iniciamos o estudo dos corredores florísticos. Pois bem…, a razão está precisamente na importância que o efeito ilha possui para ajudar a descrever essa movimentação das plantas.

Não resulta difícil entender a conjugação destes dois fenómenos, isto é do esforço reprodutivo e o efeito ilha, de um lado, e da movimentação das plantas, doutro. Se as plantas estão em constante circulação, o isolamento entre populações pode ser um fenómeno comum. De facto, movimentar indivíduos ao longo de matrizes ambientais complexas acaba por fazer com que esses próprios indivíduos não consigam “andar” à mesma velocidade. Os que tenham a sorte de se movimentar ao longo de áreas com poucos desníveis e barreiras geomorfológicas (tais como montanhas, rios, desertos, ou qualquer outro tipo de alteração ambiental contundente) poderão ter uma deslocação mais uniforme. Por contra, aqueles que se estejam a movimentar por terrenos mais acidentados farão esse percurso de modo mais difícil, deixando muitas vezes populações inteiras pelo caminho e mais ou menos fragmentadas.

Para começar a ver este fascinante processo podemos começar por aqueles que têm um dos prazeres mais cruéis dos ecossistemas, o de viver mais perto das estrelas! Ocupar esta posição implica desenvolver os seus ciclos vitais em condições ambientais mais limitantes. Estamos a falar de plantas alpinas, que alguns meses por ano vivem em solos totalmente cobertos pela neve e que concentram os seus esforços reprodutivos num curto espaço de tempo, pois a sufocante exposição solar e os intervalos térmicos diários, aos quais estão expostas, não lhes permite prolongar por demasiado tempo essa fase das suas vidas. Ao mesmo tempo, esse carácter alpino é geomorfologicamente muito variável, uma vez que as cordilheiras alpinas são características pela sua acentuada descontinuidade. De facto, os picos superiores aos 1 500 m são realmente isso… picos! Entre pico e pico vão estendendo-se vales com profundidades e larguras mais ou menos variáveis. Nestas circunstâncias a formação de ilhas biogeográficas resulta ser muito mais fácil e visível, pois as populações das espécies alpinas não conseguem colonizar muitos desses vales, especialmente os mais profundos e largos.

Alguns destes exemplos são verdadeiros clássicos da botânica. A ártico-alpina Dryas octopetala L. é um dos casos mais dramáticos. Esta espécie encontra o seu óptimo biológico em toda a área periártica, alargando a sua distribuição mais a Sul com ajuda das cordilheiras alpinas. Segundo vai afastando-se mais do Ártico procura cotas cada vez mais altas, que lhe proporcionem condições ambientais próximas às periárticas. No Sudoeste da Europa, esta primitiva Rosácea povoa os picos dos Alpes e dos Pirenéus, bem acima dos 2 000 em território francês e ibérico.

Para os amantes dos passeios alpinos esta espécie poderá não resultar-lhes desconhecida, pois não é rara entre os Altos Alpes suíços, austríacos, italianos ou franceses. Nesta altura do ano (entre Julho e Agosto) podem deleitar-se com a imagem de um arbusto prostrado de imaculadas flores exuberantes, não só pelo seu número de pétalas (oito, daí o seu epíteto específico octopetala), como também pelo número de estames e carpelos e pelos frutos semelhantes a pequenas penas de pássaros. Outra destas maravilhas alpinas está na flor escolhida pelos austríacos como emblema nacional, o Edelweiss ou Leontopodium alpinum Cass. chamou desde sempre a atenção pela sua beleza nos locais mais áridos e inóspitos das serras.

Em pedregais, falésias e pastagens alpino-pirenaicas esta composta euroasiática ocidental encontra o seu habitat natural. Para viver nessas condições ambientais tão adversas precisa de um indumento denso e longo de pêlos cinzentos, que são os que acabam por proporcionar-lhe essa coloração tão característica. Estes dois exemplos, entre outros muitos que iremos vendo ao longo das próximas notas, são casos de espécies que iniciaram o seu recuo para Norte há alguns milhares de anos. Nesse fugir para as condições ambientais que lhes permitem viver foram espalhando-se, formando assim numerosíssimas ilhas biogeográficas de indivíduos, entre os quais deixou de haver qualquer intercâmbio genético. Viver perto das estrelas é certamente mágico, mas não por isso menos cruel.

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