A Raiz do Mal

A Raiz do Mal

Publicado a 2012-06-03

Um dos maiores desafios, na hora de explicar a sistemática da flora vascular, consiste em encontrar a consistência necessária para a sua compreensão. Desde finais do século XVIII, os naturalistas foram classificando e organizando toda a riqueza florística conhecida e a que iam descobrindo. A persistência e a perseverança dos que trabalharam no convencimento helénico de que tudo pode e deve ser classificável, foi a alavanca necessária para construir o complexo e intrincado edifício sistemático florístico vascular. Contudo, a tendência reducionista foi sempre minando o pensamento de todos aqueles que intervieram na construção deste edifício, sempre em obras e em intermináveis remodelações. De facto, um dos comentários mais frequentes entre os que observamos este processo é sempre o mesmo: mas nunca haverá um consenso?; o que é classificado hoje de uma forma amanhã é doutra? Até quando esta aparente confusão entre os sistematas?

Ao longo de séculos a comunidade científica foi sendo objecto de uma mudança gradual no modo de pensar dos investigadores. O que os classificadores medievais doaram aos metódicos renascentistas serviu para analisar um conjunto cada vez maior de diversidade biológica. Já os lógicos dos séculos XVII e XVIII tentaram organizar todo esse conhecimento de modo a sistematizá-lo de forma compreensível. O resultado deste esforço provocou, de facto, um claro afastamento da realidade, pelo que os naturalistas, desde finais do XVIII até inícios do século XX, tiveram a ingente tarefa de aproximar novamente essa classificação da diversidade biológica à real natureza das coisas. Mas eles próprios dariam em si a descobrir um dos fenómenos naturais mais desconcertantes, o da continuidade. A pergunta sobre as origens dos seres vivos que iam sendo sistematicamente classificados levou a uma descoberta prodigiosa: a evolução dos seres vivos e dos ecossistemas. Inicialmente, a evolução foi planteada como um dilema, pois faltava o motor que impulsionasse a transformação e diversificação: porque essa transformação?; como essa transformação poderia diversificar?; os ancestrais deviam desaparecer obrigatoriamente? e, se assim fosse, qual seria a razão?

Ernst Haeckel faz uma descrição soberba desta mudança de pensamento nos naturalistas. Na quarta lição da sua esplêndida obra “História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais” este formidável naturalista faz um breve resumo sobre o pensamento evolutivo. Lembra-nos da escola jónica da filosofia natural (formada pelos três milesienos, Tales, Anaxímenes e Anaximandro), com a sua teoria transformista segundo a qual todos os seres vivos nasciam na água que, sob o influxo do calor solar entrariam num processo de transformação perpétua. Embora esta ideia não fosse partilhada por outros helenistas, tais como Aristóteles que defendia cegamente a geração espontânea, Haeckel não encontra novos avanços no princípio da transformação perpétua até o século XVIII, pois seria preciso um conhecimento muito mais aprofundado da diversidade biológica existente. Só a teoria genealógica de Lamarck foi capaz de reiniciar certamente esta discussão. Bem é verdade que a partir daqui Haeckel perde-se no seu encendido e exacerbado nacionalismo. Contudo este acalorado e impulsivo sábio encontra na obra de Goethe um reflexo da raiz do mal que, involuntariamente, acabará por inundar o nosso pensamento sobre a sistemática e, portanto, sobre a evolução. Em “A metamorfose dos animais” de 1819, Goethe escreve o seguinte: “Todas as partes se modelam segundo leis eternas, e toda a forma, por mais extraordinária, tem em si o tipo primitivo. A estrutura do animal determina-lhe os hábitos, e o género de vida, por seu turno, reage poderosamente sobre todas as formas. Por aqui se revela a regularidade do progresso, que tende para as mudanças sob a pressão do meio exterior”. Certamente esta passagem é desconcertante, pois se bem confirma a ideia da transformação adaptativa, ignora uma outra questão que acabaria por ser levantada pelo próprio Darwin, o princípio da variabilidade.

Curiosamente, essa variabilidade foi objecto de um importante esforço investigador por parte dos morfométricos da segunda metade do século XX. Medindo caracteres morfológicos de indivíduos da mesma espécie foram observando como em todos eles verificava-se uma comportamento morfológico diferente. Tal circunstância foi rapidamente associada a respostas adaptativas, de modo que sob umas condições ambientais predominavam umas morfologias, diferentes das que predominavam noutros ambientes. Análises moleculares complementares posteriores confirmariam ou não estas variações, mas o facto da imaginação estava já descrito. Estes resultados são, em si próprios, extremamente interessantes, pois consolidam o princípio da continuidade. Entre espécies aparentemente diferentes (morfológica, molecular e ecologicamente) existe todo um conjunto de comportamentos intermédios sobrepostos (no caso de espécies muito próximas) ou não (espécies muito afastadas evolutivamente ou sem ancestrais comuns recentes).

Levando esta polémica ao problema da sistemática, segundo a qual o objectivo pretendido é o de classificar os seres vivos, observamos que o objecto ou ser classificável é, na realidade, um padrão de comportamento diferencial e não uma variabilidade de comportamentos. Isto é, aquilo que classificamos são espécies tipo, tentando aqui incluir intervalos de variação no seu comportamento morfológico (essa variabilidade de formas que constantemente vemos na natureza para cada uma das aparentes espécies). E é aqui que radica o mal, na classificação de formas tipo como se estas fossem “estações terminais” numa viagem.

Esta é a raiz do mal da nossa visão evolutiva, que não nos permite compreender essas constantes alterações na sistemática. Tais alterações perpetuar-se-ão enquanto o sistema classificativo não consiga ser atingir o sentido contínuo da vida. Para pôr o problema nas palavras do, também naturalista alemão, G. R. Treviranus: “O indivíduo possui uma vida que lhe é própria, e, debaixo deste ponto de vista, constitui um mundo particular. Mas como a sua vida é limitada, também constituí um órgão no organismo geral. Todo o corpo vivo existe no universo; mas reciprocamente, também o universo existe por esse corpo vivo”.

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